Monday, December 19, 2005
Tem cuidado com as palavras,
mesmo com as milagrosas,
Pelas milagrosas fazemos o nosso melhor,
por vezes elas enxameiam como insectos
e deixam não uma picada mas um beijo.
Podem ser tão boas como dedos.
Podem ser tão de confiança como a rocha
onde espetas o rabo.
E podem ser malmequeres ou feridas.
Mesmo assim, estou apaixonada pelas palavras.
São pombas a cair do tecto.
São seis laranjas sagradas sentadas no meu colo.
São as árvores, as pernas do verão
e o sol, a sua cara impetuosa.
Mas muitas vezes elas falham-me.
Há tanto que quero dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios, etc
Mas as palavras não são suficientemente boas,
as erradas beijam-me.
Por vezes eu voo como uma águia
Mas com as asas duma carriça.
Mas eu tento ter cuidado
e ser cuidadosa com elas.
Palavras e ovos devem ser tratados com cuidado.
Uma vez partidos são coisas impossíveis
de reparar.
Anne Sexton
Monday, December 12, 2005
O amor não é uma profissão
distinta ou não
o sexo não é cirurgia dentária
A obturação habilidosa de dores e cavidades
não és o meu médico
não és a minha cura
ninguém tem esse
poder, és apenas um companheiro/viajante
desiste desta preocupação médica,
abotoada, atenta
permite-te raiva
e permite-me a minha
que não precisa nem
da tua aprovação nem da tua surpresa
que não precisa de ser legalizada
que não é contra uma doença
mas contra ti,
o que não precisa de ser entendido
ou lavado ou cauterizado
que ao contrário precisa sim
de ser dito e dito.
Permite-me o tempo presente.
Margaret Atwood
Monday, November 21, 2005
Porque eu não podia nem ler nem falar e nas noites longas eu não conseguia desligar a lua ou contar as luzes dos carros a atravessar o tecto.
Anne Sexton
Porque eu não podia nem ler nem falar e nas noites longas eu não conseguia desligar a lua ou contar as luzes dos carros a atravessar o tecto.
Anne Sexton
Sunday, November 13, 2005
O inventário do adeus
Tenho um maço de cartas,
tenho um maço de memórias.
Eu podia cortar os olhos a ambas.
Eu podia usa-las como um avental de retalhos.
Podia mete-las na maquina de lavar, na de secar,
se calhar parte da dor desapareceria como sujidade?
Se calhar deitando-a pelo triturador eu poderia triturar a perda.
Alem disso – que pechincha – sem telefonemas caros.
sem viagens demoradas em aviões no nevoeiro.
Sem o riso maníaco ou bênção de um padre fora-do-baralho.
Esse padre provavelmente ainda está a flutuar numa almofada de nevoeiro.
Abençoando-nos, abençoando-nos.
Tenho que te abençoar, perdido,
aqui sentada com a minha alma trapalhona?
O tempo de propaganda acabou.
Sento-me aqui no espigão da verdade.
Ninguém para odiar senão o peixe esguio da memória
que desliza para dentro e para fora do meu cérebro
Ninguém para odiar senão o toque agudo da minha camisa de dormir
roçando o meu corpo como uma luz que se apagou.
Lembra-me o beijo que inventámos, línguas como poemas,
encontrando-se, regressando, convidando, provocando uma febre de necessidade.
Risos, mapas, cassetes, toque a cantar o seu caminho –
tudo para ser partido e posto num cofre estanque
Os mortos monótonos entopem-me e há apenas
preto ornado a preto que verte do cofre.
Preciso de o estripar e depois colocar o coração, as pernas,
de dois que foram um sobre um grande monte de lenha
e acendo-o, como eu já fui acesa e deixo-o rodopiar
em chamas chegando ao céu
Fazendo-o perigoso com o seu vermelho.
Anne Sexton
Friday, November 11, 2005
um buraco na noite
subitamente invadido por um anjo
Alejandra Pizarnik
Thursday, November 3, 2005
Os lençóis foram lavados
da nossa essência conjunta – um composto,
não uma mistura; mas aqui ainda estão
esquecidos, o teu cachimbo e tabaco,
os teus livros abertos na minha mesa,
a tua voz a falar nos meus poemas.
Fleur Adcock
Monday, October 31, 2005
Bonecas,
aos milhares,
estão a cair do céu
e eu olho para cima com medo
e pergunto-me quem as irá apanhar?
As folhas, segurando-as como pratos verdes?
Os charcos, abertos como copos de vinho
para as beber?
Os topos dos edifícios para se esmagarem nas suas barrigas
e deixa-las ali para ganhar fuligem?
As auto-estradas com as suas peles duras
para que sejam atropeladas como almiscareiros?
Os mares, à procura de algo que choque os peixes?
As cercas eléctricas para lhes queimar os cabelos?
Os campos de milho onde podem estar sem ser colhidas?
Os parques nacionais onde séculos mais tarde
Serão encontradas petrificadas como bebés de pedra?
Eu abro os braços
e apanho
uma,
duas,
três…dez ao todo
a correr para a frente e para trás como um jogador de badmington,
apanhando as bonecas, os bebés onde eu pratico,
mas outras estilhaçam-se no telhado
e eu sonho, acordada, eu sonho com bonecas a cair.
que precisam de berços e cobertores e pijamas,
com pés verdadeiros
Porque é que não há uma mãe?
Porque é que estas bonecas todas estão a cair do céu?
Houve um pai?
Ou os planetas cortaram buracos nas suas redes
e deixaram a nossa infância sair,
ou somos nós as próprias bonecas,
nascidas mas nunca alimentadas.
Anne Sexton
Thursday, September 29, 2005
mais uma tradução caseira da lebre
As folhas nunca sabem
qual folha será a primeira a cair.
Será que o vento sabe?
Soseki Natsume
Tuesday, September 27, 2005
Aqui fica uma tradução “caseira” de um poema fantástico dela
Sou o único actor.
É difícil para uma mulher
interpretar uma peça inteira.
A peça é a minha vida,
o meu acto único.
O meu correr atrás das mãos
e nunca as apanhar
(as mãos não se vêem -
ou seja, estão nos bastidores)
Tudo o que faço em cena é correr,
correr para acompanhar
mas sem o conseguir.
-
De repente paro de correr.
(isto avança um bocado com o enredo)
Faço discursos, centenas,
todos orações, todos solilóquios.
Digo coisas absurdas como:
ovos não podem discutir com pedras,
ou, mantenham os vossos braços partidos dentro das mangas,
ou, estou aqui de pé mas a minha sombra está torta.
E tal e tal.
Muitos buhs. Muitos buhs.
Apesar disso eu continuo para as ultimas deixas:
Estar sem Deus é ser uma cobra
que quer engolir um elefante.
A cortina cai.
A assistência apressa-se a sair
foi uma má interpretação.
Porque sou o único actor
e há poucos humanos cujas vidas
farão uma peça interessante,
não concordam?
Anne Sexton
Monday, September 5, 2005
Olha, uma borboleta. Pediste um desejo?
Não se pedem desejos a borboletas.
Claro que pedem. Pediste um?
Sim.
Não conta.
Louise Gluck
Tuesday, August 23, 2005
Deste-me a intempérie,
a leve sombra da tua mão
a passar pela minha cara.
Deste-me o frio, a distancia,
o café amargo da meia-noite
entre mesas vazias.
Julio Cortázar
Monday, July 11, 2005
Desespero
Quem é ele?
Um carril de comboios em direcção ao inferno?
Partindo-se como um pau de mobília?
A esperança que subitamente transborda da fossa?
O amor que vai pelo cano abaixo como cuspo?
O amor que disse para sempre, para sempre
e depois te atropela como um camião?
És tu uma oração que flutua para um anúncio de rádio?
Desespero,
não gosto muito de ti.
Não ficas bem com a minha roupa e os meus cigarros.
Porque te instalas aqui
tão grande como um tanque
apontando para metade duma vida?
Não podias apenas flutuar para uma árvore
em vez de te alojares aqui nas minhas raízes,
forçando-me para fora da vida que levei
quando tem sido a minha barriga por tanto tempo?
Está bem!
Eu levo-te comigo na viagem
onde por muitos anos
os meus braços têm estado mudos
Anne Sexton
Wednesday, June 1, 2005
everyone else my age is an adult
whereas I am merely in disguise.
Tuesday, May 31, 2005
Infância
Hora em que a erva cresce
na memória do cavalo.
O vento pronuncia discursos ingénuos
em honra dos lilases,
e alguém entra na morte
com os olhos abertos
como Alice no país do já visto.
Alejandra Pizarnik
Monday, April 11, 2005
Portas trancadas
Para os anjos que habitam esta cidade,
Ainda que a sua forma mude constantemente,
todas as noites deixamos algumas batatas frias
e uma tigela de leite no parapeito.
Geralmente eles habitam o céu onde,
a propósito, não são permitidas lágrimas.
Eles empurram a lua à volta como
Um inhame cozido
A via láctea é a sua galinha
com os seus muitos filhos.
Quando é noite as vacas deitam-se
mas a lua, esse grande touro,
fica em pé.
No entanto, há lá um quarto trancado
com uma porta de ferro que não pode ser aberta.
Tem lá dentro todos os teus sonhos maus.
É o inferno.
Há quem diga que o diabo fecha a porta
por dentro.
Há quem diga que os anjos a trancam por fora.
As pessoas lá dentro não têm água
E não lhes é permitido tocar
Racham-se como macadame.
São mudas.
Não gritam socorro
excepto dentro
onde os seus corações estão cobertos de larvas
Eu gostaria de destrancar essa porta,
rodar a chave ferrugenta
e segurar cada caído nos meus braços
mas não posso, não posso.
Eu apenas me posso sentar aqui na terra
no meu lugar à mesa.
Anne Sexton
Thursday, April 7, 2005
Coisas que despertam uma memória querida do passado
Malva seca. Objectos usados na Festa das Bonecas. Descobrir um pedaço de tecido violeta escuro ou cor de uva no meio das páginas de um caderno.
Chove e estamos aborrecidos. Para passar o tempo revemos papéis velhos e descobrimos as cartas de um homem por quem já estivemos apaixonadas.
O leque de papel do ano passado. Uma noite de luar.
Sei Shonagon
Wednesday, March 30, 2005
Mais uma tradução da Anne Sexton, em modo “caseiro” e dedicada ao dia de ontem
A noite estrelada
Isso nao me evita de ter uma terrível necessidade de - devo dizer a palavra - religião Depois eu saio de noite para pintar estrelas – Vincent Van Gogh numa carta para o seu irmão
A vila não existe
excepto onde uma árvore de cabelo preto desliza
para cima como uma mulher afogada no céu quente.
A vila está silenciosa. A noite ferve com onze estrelas.
Ó noite estrelada! É assim que
eu quero morrer.
Move-se. Estão todos vivos.
Mesmo a lua que se enche nos seus ferros cor-de-laranja
para empurrar crianças, como um deus, do seu olho.
A velha serpente invisível engole as estrelas
Ó noite estrelada! É assim
que eu quero morrer.
Dentro da besta apressada da noite,
sugada por aquele grande dragão, separar-me
da minha vida sem bandeira
sem barriga,
sem grito.
Anne Sexton
Tuesday, March 22, 2005
As palavras assemelham-se por vezes a cortinas de janelas - uma divisória decorativa destinada a manter os vizinhos à distancia.
Margaret Atwood
Thursday, March 17, 2005
Os blues
Os blues servem
Os blues servem para cantar as noites solitárias
Os blues servem para cantar as minhas noites solitárias
Os blues
Os blues não são nada
Os blues não são nada mais que um canto
Os blues não são nada mais que um canto para gritar nas minhas noites solitárias
Os blues são uma estrela que brilha todas as noites para não se apagar depois até que volte a noite
Os blues são uma estrela que brilha
Os blues são uma estrela
Os blues sao
Os blues
Os blues são uma oração que cantam os negros e alguns brancos
para pedir que a noite não seja tão negra
Os blues são uma oração que cantam os negros e alguns brancos para pedir
Os blues são uma oração que cantam os homens
Os blues são uma oração
Os blues são
Os blues
JOAQUIM HORTA I MASSANÉS
Tradução caseira da lebre
Sunday, March 6, 2005
Não temas o silêncio quando já não há palavras
nas tuas mãos.
Elizabeth Azcona Cranwell
Tuesday, February 22, 2005
mais uma traduçao caseira:)de um poema que adoro
Há mil portas atrás
quando eu era uma miúda solitária
numa casa grande com quatro
garagens e era verão
desde sempre,
da noite deitada na relva,
com os trevos a enrugarem-se por cima de mim
as estrelas sábias deitadas sobre mim,
a janela da minha mãe um funil
de calor amarelo a escorrer
a janela do meu pai, meia fechada,
um olho onde adormecidos passavam,
e as tábuas da casa
eram macias e brancas como a cera
e provavelmente um milhão de folhas
velejavam nos seus caules estranhos
enquanto os grilos faziam tiquetaque em uníssono
e eu, no meu corpo recém estreado,
que ainda não era o de uma mulher,
dizia às estrelas as minhas perguntas
e pensava que Deus poderia mesmo ver
o calor e a luz pintada,
cotovelos, joelhos, sonhos, boa noite.
Anne Sexton
Sunday, February 13, 2005
A lebre está muito contente, afinal sempre vai ter o festival de blues em Coimbra
Os blues
Os blues servem
Os blues servem para cantar as noites solitárias
Os blues servem para cantar as minhas noites solitárias
Os blues
Os blues não são nada
Os blues não são nada mais que um canto
Os blues não são nada mais que um canto para gritar nas minhas noites solitárias
Os blues são uma estrela que brilha todas as noites para não se apagar depois até que volte a noite
Os blues são uma estrela que brilha
Os blues são uma estrela
Os blues sao
Os blues
Os blues são uma oração que cantam os negros e alguns brancos
para pedir que a noite não seja tão negra
Os blues são uma oração que cantam os negros e alguns brancos para pedir
Os blues são uma oração que cantam os homens
Os blues são uma oração
Os blues são
Os blues
JOAQUIM HORTA I MASSANÉS
tradução caseira da lebre
Thursday, February 10, 2005
Li este poema num livro da Margaret Atwood, não descansei enquanto não o traduzi, foi a maneira mais simples de me tentar ver livre da bofetada que ficou colada na cara
I
Somos duros um com o outro
e chamamos-lhe honestidade
escolhendo as nossas verdades dentadas
com cuidado e apontando-as através
da mesa neutra
As coisas que dizemos são
verdadeiras: é o nosso alvo
retorcido, são as nossas escolhas
que as tornam criminosas.
II
Claro as tuas mentiras
são mais divertidas:
porque as fazes novas de cada vez
As tuas verdades, dolorosas e chatas
repetem-se continuamente
se calhar porque és dono
de tão poucas
III
Uma verdade deveria existir
não deveria ser usada
assim. Se eu te amo
é isso um facto ou uma arma?
O corpo mente
ao mover-se assim, são estes
toques, cabelos, o mármore
macio e húmido que a minha língua percorre
mentiras que me estás a dizer?
O teu corpo não é uma palavra,
nem mente
nem fala a verdade
Apenas
está aqui ou não está.
Margaret Atwood